Projeto Ondas de Transformação
Quinta-feira. Um dia qualquer de março, ensolarado. Mais uma vez nos adentramos nas estreitas ruas do Jardim Ibirapuera. Os dois lados da calçada estão sempre cheios de carros, mas tivemos a sorte de poder contar com uma vaga que o Buiú reservou para a gente na frente da viela que leva a sua casa.
Chegamos com a proposta de almoçar, mas o nosso amigo é uma pessoa com as ideias bem claras: “primeiro, vamos trabalhar”.
Com a câmera na mão, descemos para dentro das vielas da comunidade, por uma estreita escadaria que leva até o portão do Projeto Viela. Uma explosão de cores em cada canto do caminho nos deixa fascinados. Vários grafites retratam com detalhe os aspectos mais característicos da comunidade.
Assim que a gente sobe o último degrau do prédio do Projeto Viela, começamos a nos acomodar na sala que hoje serve de abrigo para as ideias do Buiú. Finalmente, chega o momento de adentrarmos na sua história:
“Me chamo Anderson, tenho 35 anos, e desde criança sempre convivi correndo pelas vielas”
Toda criança tem o direito de aprender brincando
Foi na década de 1970 que os pais do Buiú chegaram em São Paulo, em busca de “um outro lugar, para viver uma vida boa”. Não obstante, chegando aqui perceberam que tudo aquilo que encontraram não estava realmente tão perto do que tanto tinham sonhado.
“Toda a nossa vida foi cheia de dificuldades, desafios e crescimento também. Tudo aconteceu aqui nesse bairro que é o Jardim Ibirapuera”
Buiú nasceu e cresceu junto à família em uma das maiores metrópoles do mundo, na qual ainda hoje são considerados “imigrantes” dentro do seu próprio país. As dificuldades econômicas, para arrumar emprego, e as brechas sociais que historicamente obrigam uma grande parte de população a “correr atrás” de novas oportunidades, fizeram com que o destino levasse eles a construírem um lar nas ocupações que originaram o Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo.
Hoje, a comunidade já é uma área consolidada, formada por mais de 3 mil moradias. E foi lá mesmo, no Jardim Ibirapuera, onde o Buiú teve o valor, a esperança e a vontade suficientes para criar o seu próprio projeto de impacto social: o Projeto Viela.
Mulheres transformadoras
Até os 25 anos de idade, Buiú sofreu vários conflitos que marcaram a trajetória da sua vida. Esteve envolvido com drogas e vários episódios de violência, que o colocaram em um beco sem saída.
“Eu preenchia os meus momentos com droga, ela era a minha maior companheira. Eu achava que ela que preenchia o vazio de alguma forma, só que quando acordava no outro dia, os problemas estavam aí de novo e eu não conseguia lidar com eles de uma forma mais madura”.
Porém, o episódio mais marcante que o Buiú já viveu foi quando um certo dia, um homem de outra comunidade envolvido com o tráfego confundiu ele com um desafeto. Aquela confusão levou o Buiú a ser ameaçado de morte, perseguido e coagido, até que ele mesmo, sozinho, conseguiu provar que o sujeito estava equivocado para poder continuar vivendo.
O fato de conseguir fugir daquela situação abriu caminho para uma nova etapa na sua vida, um novo momento de plenitude e transformação. Buiu costuma dizer que existem 6 mulheres que mudaram a sua vida. E foi neste momento que elas começaram a chegar e a conduzir ele para os novos caminhos pelos quais hoje transita.
Primeiro foi sua mãe, Dona Mercedes, que o ajudou a abrir os olhos, a deixar para atrás os momentos mais difíceis do passado, para enxergar um futuro melhor, possível de alcançar dando pequenos passos.
Na sequencia vieram 4 mulheres que ele conheceu em várias instituições de amparo pelas quais passou. Dona Andrea despertou em Buiú o interesse pelo social, através de trabalhos de pintura e tela com os quais ajudava a outros jovens na reinserção e desenvolvimento pessoal, utilizando a arte como uma ferramenta fundamental. A Eliana e a Ana Paula também foram dois grandes apoios na sua nova trajetória:
“Vieram para ligar uma chave muito importante na minha vida, que é a chave de você acreditar, de você olhar a vida de uma outra forma, por outra perspectiva de vida, com mais valor... Não se entregar tão fácil assim”
Em uma segunda fase, apareceu a Dona Eda que “fez até o que não estava ao alcance dela para eu poder ficar com ela”, assegura Buiú. Ela é a diretora do CIEJA Campo Limpo, um centro com uma proposta de educação alternativa que oferece a oportunidade de estudar em qualquer horário, para quem quiser apreender. Ela quis ajudar o Buiú a retomar os estudos que tinha abandonado com apenas 9 anos.
Dona Eda pagou uma parte do próprio salário para conseguir que o Buiú trabalhasse com ela; e entre as aulas, ele foi o responsável por pintar de cores o CIEJA. Acabou se formando intelectualmente e desenvolvendo as suas capacidades artísticas também, em um espaço que hoje considera seu lugar de “mudança e transformação”. Graças às experiências no CIEJA e ao apoio dessas mulheres que o apoiaram, Buiú alcançou a sua primeira meta, a de se formar em Educação Física. Mas o mais importante que a Dona Eda o ensinou é que “a gente é capaz”, que não pode desistir nem deixar de caminhar.
Por último, chegou a Elisa, o amor da sua vida, que hoje é sua mulher e acompanha ele em todos os aspectos, na aventura de viver.
Todas essas mulheres “mexeram com algo que ainda estava muito acomodado em mim”, fizeram ele olhar para o mundo a partir do “lado do bem”. Mas o mais importante para o Buiú “foi a questão de ver quanto elas eram fortes e quanto elas podiam fazer“.
Mudando o Jardim Ibirapuera
No começo dessa nova vida, Buiú observou que estava precisando parar para pensar qual o propósito do seu dia a dia. E foi assim que ele descobriu o desejo de oferecer aos jovens da comunidade as oportunidades que ele queria ter tido durante a sua infância.
O objetivo não era “dar as coisas prontas para os moleques do bairro”. Ele queria oferecer ferramentas, mostrar novos caminhos para eles; e tentar valorizar os interesses de todas as crianças, que são as verdadeiras responsáveis pelo futuro da comunidade. O sonho do Buiú era cuidar do tempo de lazer das crianças do bairro, e hoje ele deu vida a vários projetos que completam e fornecem qualidade às vidas do Jardim Ibirapuera.
Assim foi que nasceu o Projeto Viela, que surgiu em 2009 com o objetivo de “olhar para a comunidade”; nasceu como uma forma do Buiú “resgatar a sua própria história de vida”. Trata-se de uma associação cultural esportiva que trabalha com transformação de vida. No Projeto Viela, a leitura, o cinema e o esporte são os principais eixos para atender as demandas das crianças.
O principal diferencial do projeto é o fato dele ter surgido da demanda dos moradores e não se tratar uma iniciativa imposta de fora para dentro da comunidade. “Tudo tem um atrativo por trás, para a gente poder trabalhar com a molecada. Desse jeito, tudo vira uma expertise”, afirma Buiú. Além disso, “você conectar as coisas, faz as coisas andarem junto”, no caso a cultura e o esporte, faz com que o conhecimento gerado pelas atividades seja completo, verdadeiro e revelador para as mais de 130 crianças que hoje fazem parte do Projeto Viela.
A revitalização coletiva dos espaços comuns do Jardim Ibirapuera, da infância e de todas as pessoas que querem fazer parte do sonho coletivo de mudança é o principal propósito do projeto de vida do Buiú. Atualmente, as diversas atividades promovidas no Projeto Viela conseguem incentivar uma convivência pacifica e o desenvolvimento sustentável da comunidade em geral.
“Tudo tem um atrativo por trás, para a gente poder trabalhar com a molecada. Desse jeito, tudo vira uma expertise”
De forma resumida, o Viela, é uma iniciativa que introduz a literatura para crianças da região através de rodas de conversa, leituras e debates; onde ao mesmo tempo é trabalhado o esporte, através do futebol e o jiu-jitsu; onde também é impulsionada a arte do cinema, através do “Cinema na Viela”; e a última novidade são as aulas de inglês, que acontecem aos sábados também no Projeto Viela.
Mais do que cultura e esporte, o projeto dá perspectivas e alternativas para as crianças e jovens do Jd. Ibirapuera.
Um Lugar de Resistência
Histórias de vida, de mudança e de transformação, que de novo nos levam a pensar qual o lugar que a gente ocupa na sociedade, qual a nossa missão e o valor das nossas ações. Histórias que nos obrigam a seguirmos pensando em importantes questões:
Será que estamos vivendo com base nos nossos valores?
O nosso dia a dia tem um propósito autêntico que nos enche de felicidade?
Centro ou periferia, o certo é que todos nós somos só e simplesmente pessoas. O “outro” que enxergo pela minha perspectiva me transforma no “outro” que eu sou para quem vive fora do meu “território”. Vivemos em territórios separados de forma artificial, pois seja terra ou asfalto, periferia ou centro, favela ou bairro, o chão que a gente pisa é um direito para todas as pessoas.
O “outro” sou eu, é ele e você também. Mas ainda hoje, só aqueles mais estigmatizados se veem obrigados a assumir o fato de viverem deslocados em sua própria cidade.
Quinta-feira. Um dia qualquer de março, ensolarado. No final das contas o que permanece é a fala do nosso querido Buiú, a partir do lugar que um dia ele escolheu para mudar sem ser mudado, e onde surgiu o Viela:
“Eu vejo que onde eu moro, sofremos com o descaso, mas nos modificamos com as condições que são nos impostas desde sempre. O conceito de viver em meio ao caos significa lutar pra ter, para sobreviver. Lutar até para que os nossos direitos sejam respeitados. Porque a nossa realidade de hoje tira cada vez mais de quem não tem. Por isso acho, aqui o Jd. Ibirapuera é um lugar de resistência”.
Mayte Santos Albardía
Jornalista e comunicadora audiovisual. Colaboradora de Planeta Futuro | El País no Brasil e responsável pela área de comunicação do Sense-Lab.
Atualmente cursa Mestrado no Programa Integração América Latina da USP e dedica o seu dia a dia a seguir conhecendo e contando histórias de vida ao redor do mundo.